A viradora de páginas

Ao lado de algum músico, nota a nota seus olhos percorrem atentamente a música. Mesmo para alguém experiente como ela, de vez em quando surge certas partituras que lhe exigem um esforço extra. Seja por ter uma escrita rítmica demasiado complexa, seja por estar mal impressa, não é raro realizar seu ofício guiada apenas pelas manchas em matizes de preto que as notas sob os pentagramas sob papel sob a estante produzem em sua vista, à distância quase sempre invariável que um virador costuma ficar.

Realiza seu ofício com perfeição. Teve aquela vez, na sonata para dois pianos e percussão do Bartók, que esteve certa de que, em algum momento, iria se perder. Mas, sorte, o pianista lhe indicava com a cabeça o momento correto para virar a página, e ao fim tudo ocorreu bem e em segurança.

Aliás, esta é sua principal qualidade, a virtude pela qual os produtores a contratam: todos os músicos para quem vira páginas sentem enorme confiança em sua figura. Freqüentemente ela trava animadas conversas com esses músicos. Em sua maioria eles são pianistas. Como ela. Vez ou outra vira páginas para um organista ou cravista.

Nota a nota seus olhos percorrem atentamente a música. Por vezes deixa a partitura de lado, e o faz de cor.

No teatro vazio, meia hora após o recital de um trio romeno, ela tem o Steinway todo para si. O Sr. Heinz, austero produtor que regularmente a contrata, resta na penumbra da coxia, absorto pela música que ouve.

Um noturno de Chopin com o fraseado daquele pianista austríaco, no recital Liszt. Algumas daquelas pequeninas sonatas de Scarlatti com as delicadas articulações da cravista que tocou Couperin. Uma sonata de Prokofiev com os contrastes e as cores daquele mesmo pianista da sonata de Bartók. E, sublime, as canções do Frauenliebe und Leben de Schumann. Sem voz. Só com aquela, imaginária, que em suas sensações também viam da viradora de páginas.

Não que o que chegava aos ouvidos do Sr. Heinz fosse um mosaico de pedras díspares e irregulares. Antes, a teia musical que a viradora de páginas tecia convertia-se numa música singular que ele, o erudito e cioso produtor, sequer imaginara poder existir. Seria mesmo a música ou apenas efeito do whisky bebido no intervalo?

Chegou a dar alguns passos em direção ao palco, surpreendê-la, elogiá-la, propor uma carreira de verdade, um mundo aos pés de seu talento. Mas parou: não seria esta reclusão, seu o anonimato de viradora de páginas, sua existência musical sem vaidades que justamente propiciavam a música que ouvia?

Aquilo já lhe era precioso demais para correr o qualquer risco e ele estava disposto a lutar contra sua natureza mercantil para poder sentir novamente o êxtase experimentado esta noite.

Ele teria de se contentar com esses recitais privados, secretos, ouvidos na escuridão da coxia. Teria que garantir toda a condição necessária para que após cada concerto, com ou sem piano, ela pudesse estar a sós com um. Garantir que as luzes estivessem acessas. Que nenhum funcionário a incomodasse. Que sempre houvesse uma garrafa de água fresca (tinha que parecer que fora deixada, e não de ter sido especialmente preparada para ela).

Nesse seu novo ofício, tudo deve ser meticulosamente arranjado para que não pareça arranjado. Garantir a impressão de casualidade na viradora de páginas, para após cada concerto – que desde então se tornaram horas maçantes ao Sr. Heinz – ouvir o verdadeiro recital. Sob a luz enviesada da coxia de um teatro vazio.

por Leonardo Schu (o Martinelli)

Um comentário:

Anônimo disse...

Mesmo para alguém experiente como ela, de vez em quando surgem certas partituras que lhe exigem um esforço extra.