Falsa epifania
“Mas Alice, eu já disse que não sou mitômano!”. Amilton tomou um susto quando leu esta frase numa revista esquisita que nunca tinha visto antes. Que coincidência, pensou, justamente o nome de sua mulher. A frase em si não tinha lhe chamado a atenção. Mas se deparar com o nome da mulher divertiu Amilton, que levou a tal revista para casa. Alice leu a frase, mas não compartilhou da mesma fascinação do marido. “Mas e aí? Você vai participar do concurso?”, perguntou, levemente entediada. Na verdade Amilton não tinha cogitado esta hipótese. Nunca tinha se interessado muito por literatura. Lia, no máximo, uns best-sellers que a mulher levava pra dentro de casa, e nunca se imaginou escrevendo algo para os outros lerem (na verdade, Amilton escrevia muito – relatórios, petições e requerimentos – mas nada que as pessoas realmente lessem). “Ué, escreve aí. De repente rola uma grana”, disse Alice. Com os dedos mirados para a revista Amilton mostrou à mulher que não havia prêmio em dinheiro. “Xiii... que droga. Então pra quê escrever, né?” concluiu sua mulher, dando meia-volta em direção cozinha e deixando Amilton plantado na sala com a revista nas mãos. Depois do jantar, Amilton foi para o quartinho do computador, com a revista a tiracolo. “Mas Alice, eu já disse que não sou mitômano!”. Que diabos de frase é esta?!, pensou. Na verdade tinha ouvido poucas vezes a palavra mitômano. Só se lembrava do debate político
Era começo de noite. Eu havia acabado de sair da confusão barulhenta e mal-cheirosa do centro velho – monóxido de carbono, mijo e gordura – subindo a ladeira que conduz à região dos puteiros da cidade. A calçada estava coalhada de zumbis andando apressadamente contra mim, e outros tantos dentro de suas máquinas ardiam o asfalto em mais um bom e velho congestionamento. Estava puto. Mais um canalha havia me dado um calote, como se já não me bastassem os problemas que cotidianamente aporrinham idiotas como eu.
Marchava, destilando bílis sobre o caloteiro, sobre mim, sobre as pessoas que conheço; lamentando sobre as que gostaria de conhecer mas que, na verdade, sei que não existem; pensando minha relação com tudo isto e o mundo quando fui arrancado para fora deste autismo por um silvo que, em alto e claro som, melismava Strangers in the Night.
Vi que o assovio vinha de um sujeito de uns trinta e poucos, montado numa lambreta vermelha. Preso pelo congestionamento, assobiava olhando para o céu tal como se fosse um lobo e a lâmpada de mercúrio do poste fosse sua lua. Porém, estava claro que não era para o poste para quem ele assobiava, mas sim para nós, todos nós que passávamos por ele e fingíamos não notar a situação. “Hei! Prestem atenção no que estou tentando dizer!”.
É bem verdade que nem por ter me dado conta disto interrompi a marcha (afinal, ia ficar lá, parado assistindo o cara?). Entretanto, foi como se uma tecla off tivesse calado tudo à minha volta. Continuando a marchar, desviando dos outros, a melodia não saiu de minha cabeça. Procurei não pensar em Frank Sinatra cantando – isso só me faria mais doente – mas sim numa big-band tocando-a com uma cerimoniosidade religiosa; pequenos solos de sax que encadeavam tuttis que me estremecia a espinha; homofonias; contrapontos; uma música tão irreal tanto como a vida que tinha como a qu’eu queria ter.
Subi toda a ladeira, passei pela zona do meretrício, por avenidas, comércios, mendigos, condomínios grã-finos, mais carros congestionados, luzes, cheiros, pessoas e toda espécie de demônios até chegar num lugar que pela primeira vez reconheci como lar. Este era a minha casa, e agora era eu quem estava a assoviar.
No dia seguinte, à mesma hora, a alguns metros mais acima do lugar que no dia anterior havia ouvido o tal sujeito, lá estava ele, com sua lambreta estraçalhada, óleo e sangue misturando-se e seu corpo partido ao meio pela roda de um ônibus, esmagado pelas patas de um destino que não tolera interferências, tal qual uma besta que trucida cada botão de flor que brota em seu lodaçal.
Desta vez, eu e os demais zumbis paramos para assistir ao motociclista.
por Leonardo Schu (o Martinelli)
Foi numa destas cidadezinhas turísticas, daquelas que em uma determinada época do ano concertos pipocam em todos os lugares.
Tínhamos ficado numa destas pousadas feitas especialmente para casais. Tinham dividido a cama, o banho, a mesa do café, o baseado. Tinham ido a concertos, a parques de diversão, a restaurantes, a lojas. Tinham feito sexo, caminhadas, passeios a cavalo, city-tours.
Foi num concerto ao livre, num dia ensolarado e frio, ouvindo uma desafinada orquestra infantil, que ela, apertando seu antebraço, voltando-se de frente para ele e olhando fixamente para o zíper de sua jaqueta disse “Eu não suporto mais. Eu não agüento mais tudo isto. Me desculpa, você é um cara legal, e esses dias foram maravilhosos, mas... não é com você que eu queria ter vivido tudo isto. Me desculpa”. E ela se foi, sem se preocupar em pegar suas coisas na pousada, deixando ele plantado na praça.
“Meu Deus, o que significa isso?!”, pensou o homem, errando nervosamente pela cidadezinha, procurando a resposta para tudo aquilo.
Mas a única coisa que ele encontrou foram os cheiros dos quitutes locais e música: entrou num bar para tomar um trago e lá estavam eles, um violonista e uma cantora que o olhavam com se estivessem a par de tudo e, nem por isso, sentiam a mínima cosimeração. Em frente ao ponto do city-tour um pseudo grupo folclórico alemão tocando pseudo música folclórica alemã: o duendezinho da sanfona lhe sorria. Na calçada, um animado grupos de estudantes música disputavam quem conseguia cantar mais agudo, ou mais grave, alguma melismazinho de uma ópera qualquer (como todas as são). Na praça, lá estavam elas – “de novo!” – as crianças da orquestra, tocando ainda pior que antes. Como lhe era aterrador aquelas melodiazinhas bobas tocadas de modo tão atroz. Seria este também seu fim? Uma vida onde as pequenas coisas ocorrem de maneira tão amarga?
Ele correu, para longe de tudo aquilo, para longe da badalação, dos cafés na calçada, das famílias consumindo tudo o que não podem pagar, das crianças mimadas pedindo mais, dos comerciantes vendendo tudo mais caro, dos filhinhos de papai exibindo suas máquinas para as patricinhas que exibiam suas plásticas, dos namoradinhos abraçados e desfilando uma felicidade que ele, agora, sabia que jamais teria. Chegou no subúrbio, por detrás da maquiagem do centro, no lugar onde morava a verdadeira população da cidade. Encontrou uma espécie de restaurante, com um grande salão, vazio e em silêncio; meio escuro, na verdade. Entrou e pegou uma mesa. Pediu uma bebida, um maço de cigarros qualquer, e ficou. Ouvindo o silêncio e olhando fixo para o nada.
A noite caiu, e sem que ele tivesse notado, o lugar não estava mais vazio. Havia agora mais três garçons, cheiro de gordura, ruído das pessoas tagarelando, rindo e comendo e a voz rouca de um gordo cantando uma destas canções da moda num karaokê com o volume muito alto. Vez ou outra dava pra ouvir a descarga de um banheiro.
Não sentiu forças para sair daquele inferno terreno. Ficou lá, sentado com um copo de algo intragável sobre a quina da mesa, fumando a marca de cigarros mais barata que existia e ouvindo os timbres metálicos da máquina chinesa mesclados à voz podre do sujeito que ainda regurgitava ao microfone.
Fingindo tentar não pensar nela.
por Leonardo Schu (o Martinelli)
Ao lado de algum músico, nota a nota seus olhos percorrem atentamente a música. Mesmo para alguém experiente como ela, de vez em quando surge certas partituras que lhe exigem um esforço extra. Seja por ter uma escrita rítmica demasiado complexa, seja por estar mal impressa, não é raro realizar seu ofício guiada apenas pelas manchas em matizes de preto que as notas sob os pentagramas sob papel sob a estante produzem em sua vista, à distância quase sempre invariável que um virador costuma ficar.
Realiza seu ofício com perfeição. Teve aquela vez, na sonata para dois pianos e percussão do Bartók, que esteve certa de que, em algum momento, iria se perder. Mas, sorte, o pianista lhe indicava com a cabeça o momento correto para virar a página, e ao fim tudo ocorreu bem e em segurança.
Aliás, esta é sua principal qualidade, a virtude pela qual os produtores a contratam: todos os músicos para quem vira páginas sentem enorme confiança em sua figura. Freqüentemente ela trava animadas conversas com esses músicos. Em sua maioria eles são pianistas. Como ela. Vez ou outra vira páginas para um organista ou cravista.
Nota a nota seus olhos percorrem atentamente a música. Por vezes deixa a partitura de lado, e o faz de cor.
No teatro vazio, meia hora após o recital de um trio romeno, ela tem o Steinway todo para si. O Sr. Heinz, austero produtor que regularmente a contrata, resta na penumbra da coxia, absorto pela música que ouve.
Um noturno de Chopin com o fraseado daquele pianista austríaco, no recital Liszt. Algumas daquelas pequeninas sonatas de Scarlatti com as delicadas articulações da cravista que tocou Couperin. Uma sonata de Prokofiev com os contrastes e as cores daquele mesmo pianista da sonata de Bartók. E, sublime, as canções do Frauenliebe und Leben de Schumann. Sem voz. Só com aquela, imaginária, que em suas sensações também viam da viradora de páginas.
Não que o que chegava aos ouvidos do Sr. Heinz fosse um mosaico de pedras díspares e irregulares. Antes, a teia musical que a viradora de páginas tecia convertia-se numa música singular que ele, o erudito e cioso produtor, sequer imaginara poder existir. Seria mesmo a música ou apenas efeito do whisky bebido no intervalo?
Chegou a dar alguns passos em direção ao palco, surpreendê-la, elogiá-la, propor uma carreira de verdade, um mundo aos pés de seu talento. Mas parou: não seria esta reclusão, seu o anonimato de viradora de páginas, sua existência musical sem vaidades que justamente propiciavam a música que ouvia?
Aquilo já lhe era precioso demais para correr o qualquer risco e ele estava disposto a lutar contra sua natureza mercantil para poder sentir novamente o êxtase experimentado esta noite.
Ele teria de se contentar com esses recitais privados, secretos, ouvidos na escuridão da coxia. Teria que garantir toda a condição necessária para que após cada concerto, com ou sem piano, ela pudesse estar a sós com um. Garantir que as luzes estivessem acessas. Que nenhum funcionário a incomodasse. Que sempre houvesse uma garrafa de água fresca (tinha que parecer que fora deixada, e não de ter sido especialmente preparada para ela).
Nesse seu novo ofício, tudo deve ser meticulosamente arranjado para que não pareça arranjado. Garantir a impressão de casualidade na viradora de páginas, para após cada concerto – que desde então se tornaram horas maçantes ao Sr. Heinz – ouvir o verdadeiro recital. Sob a luz enviesada da coxia de um teatro vazio.
por Leonardo Schu (o Martinelli)