Strangers in the Night

Era começo de noite. Eu havia acabado de sair da confusão barulhenta e mal-cheirosa do centro velho – monóxido de carbono, mijo e gordura – subindo a ladeira que conduz à região dos puteiros da cidade. A calçada estava coalhada de zumbis andando apressadamente contra mim, e outros tantos dentro de suas máquinas ardiam o asfalto em mais um bom e velho congestionamento. Estava puto. Mais um canalha havia me dado um calote, como se já não me bastassem os problemas que cotidianamente aporrinham idiotas como eu.

Marchava, destilando bílis sobre o caloteiro, sobre mim, sobre as pessoas que conheço; lamentando sobre as que gostaria de conhecer mas que, na verdade, sei que não existem; pensando minha relação com tudo isto e o mundo quando fui arrancado para fora deste autismo por um silvo que, em alto e claro som, melismava Strangers in the Night.

Vi que o assovio vinha de um sujeito de uns trinta e poucos, montado numa lambreta vermelha. Preso pelo congestionamento, assobiava olhando para o céu tal como se fosse um lobo e a lâmpada de mercúrio do poste fosse sua lua. Porém, estava claro que não era para o poste para quem ele assobiava, mas sim para nós, todos nós que passávamos por ele e fingíamos não notar a situação. “Hei! Prestem atenção no que estou tentando dizer!”.

É bem verdade que nem por ter me dado conta disto interrompi a marcha (afinal, ia ficar lá, parado assistindo o cara?). Entretanto, foi como se uma tecla off tivesse calado tudo à minha volta. Continuando a marchar, desviando dos outros, a melodia não saiu de minha cabeça. Procurei não pensar em Frank Sinatra cantando – isso só me faria mais doente – mas sim numa big-band tocando-a com uma cerimoniosidade religiosa; pequenos solos de sax que encadeavam tuttis que me estremecia a espinha; homofonias; contrapontos; uma música tão irreal tanto como a vida que tinha como a qu’eu queria ter.

Subi toda a ladeira, passei pela zona do meretrício, por avenidas, comércios, mendigos, condomínios grã-finos, mais carros congestionados, luzes, cheiros, pessoas e toda espécie de demônios até chegar num lugar que pela primeira vez reconheci como lar. Este era a minha casa, e agora era eu quem estava a assoviar.

No dia seguinte, à mesma hora, a alguns metros mais acima do lugar que no dia anterior havia ouvido o tal sujeito, lá estava ele, com sua lambreta estraçalhada, óleo e sangue misturando-se e seu corpo partido ao meio pela roda de um ônibus, esmagado pelas patas de um destino que não tolera interferências, tal qual uma besta que trucida cada botão de flor que brota em seu lodaçal.

Desta vez, eu e os demais zumbis paramos para assistir ao motociclista.

por Leonardo Schu (o Martinelli)

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